Eu queria ser poeta. Mais sou apenas um contador de historias.
Na panela, macarrão queimado, ele cismou de fazer artesanato,
cheiro de tinta pela casa inteira.
Mesmo ali, no terceiro azulejo branco da esquerda pra direita,
ali a denúncia das novidades, mancha disforme e magenta saltando a olho nu.
A vizinha segue rindo um riso esgarçado, estridente, e a
televisão alta indica que o motivo do riso é igualmente patético, mas você
sabe, não há nada mais triste que um domingo, dia sem dentes, somente a gengiva
nua e amolecida sorrindo pra nós. Enquanto toma conta das suas minúsculas
quinquilharias artesanais, diz com uma voz esquecida de emudecer.
- Eu também seria escritor se soubesse como. Eu escreveria
muitíssimo se pudesse, montes e montes de páginas, escreveria horrores, até
transbordar, uma puta de uma overdose de palavras pra todos os cantos, até não
restar mais nada o que dizer! Mas, olha, não sei, acho que vocês são mesmo é
loucos, vocês que se dizem escritores, porque escrever é também falar sozinho,
não é? Vocês falam e falam, mas vocês não dizem muita coisa, agora mesmo, eu
estou aqui falando enquanto você não diz nada e só quem me ouve é o pote de tinta,
o ex-macarrão que um dia já esteve nesse mundo e agora é pura massa queimada na
panela, você que é você não está nem por aqui, você está é todo pra dentro que
eu posso perceber, todo pra dentro, sem palavra nenhuma pra me dar. Sobre a
madeira crua, a tinta azul petróleo, vai ficar bonito, vai fazer alguém feliz
esse porta-retrato enfeitado, mesmo que ninguém o compre, ele já nasce com a
possibilidade de se doar pras utilidades alheias e isso por si só já é
bastante, não é? No fundo, no fundo, o que a gente faz é sempre uma tentativa
de se dar um pouco mais... e consegue?
Pois é, eu sei, estou falando demais, isso é pra você ver o
que as palavras fazem, umas vão puxando as outras, fazem a gente entrar num
ciclo e no fim das contas, era tudo artimanhas, pois nada de fato foi dito,
estamos sempre patinando na própria voz. Por isso mesmo que eu gosto das
tintas, nada é prometido, nada chega a lugar nenhum, apenas uma superfície
cobrindo a outra e fica tudo por isso mesmo, inclusive, pensando bem, se eu
pudesse escrever, talvez eu preferisse não escrever nada.
Assim como preferi não sair e não ganhar meu salário mensal,
mas sim percorrer os outros caminhos que as pessoas desmerecem mas existem e
existem para serem caminhados.
Já no prato está o frango, plano B pros desvios naturais do
percurso, ele comendo como quem rumina, ele falando como quem vomita, cheiro de
tinta pela casa inteira.
E eu não preciso de uma caneta e um papel pra encontrar meus
sentidos, amor, vez em quando a gente prefere não fazer as coisas simplesmente
porque a gente pode preferir, a gente pode não fazer, e o poder não fazer é
tudo, mesmo quando não muda nada.
Eu mesmo posso largar agora esse pincel colorido de laranja,
esse futuro porta-retrato que um dia vai segurar a marca da vida de uma outra
pessoa, eu posso largar e ir embora, sair por aí, ir ao parque, eu posso, e é o
poder que me situa, você entende?
Às vezes, confesso, fico me perguntando e só te digo isso
porque sei que você não ouve, se ouvisse realmente não te daria confissões, eu
fico me perguntando se essas nossas liberdades não são um disfarce pro nosso
querer tão desesperado, será que não?
Será que eu penso que posso apenas pra achar que, se faço, é
porque quero, enquanto no fundo a verdade é que eu preciso?
E, meu Deus, olha só pra você, ninguém nem diz que é um escritor
importante, centenas de textos publicados, prêmio sei lá da onde, ninguém diz,
você comendo esse feijão e essa linguiça no domingo, todo nu das palavras,
parecendo até um mudo, até um muro, ninguém diz!
Eu mesmo também não digo é nada, pra mim você é um homem
quase anjo.
Se quiser me deixar, já disse, tenho aqui as minhas artes,
necessárias ou não, tenho aqui minhas imposições, mais te peço que leve, essas
mil páginas espalhadas pela casa, leva essas letras, para que nunca se esqueça
de mim.
Pensando melhor, ainda bem que não posso escrever, que
desespero seria se eu pudesse… aliás, melhor ainda que eu nem saiba como
escrever, se soubesse, seria obrigado a desaprender. Porque seria obrigado a
escrever diária mente sobre a nossa historia.
Eu prefiro ficar aqui pintando você, eu. Ah nossa vida.
Espera!
Você ainda não entendeu não é?
Eu te amo e sempre irei te amar.
Eu te amo e sempre irei te amar.
♫ Let your memories grow stronger and stronger
'Til they're before your eyes
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